os quatro elementos da natureza os quatro pilares da sabedoria os quatro atributos do corpo os quatro cavaleiros do apocalipse

9.5.07

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Era uma vez um miúdo que vivia numa longínqua aldeia lá para os lados da mais alta serra do país. Tão longínqua era a dita aldeia que ficava, digamos assim, longe de todas as outras aldeias e vilas e cidades do referido país. Na casa onde tinha nascido e na qual tinha passado todos mas mesmo todos os dias e noites da sua vida moravam também um gato muito muito velho a quem nunca ninguém se tinha lembrado de dar um nome, um cão um pouco mais novo mas ainda assim pró velhinho e que passava o seu tempo a coçar-se e a tentar lamber os próprios testículos, e um senhor de meia idade que desde há muito dava pelo nome de tio apesar de não ser tio de ninguém e muito menos do miúdo em questão. Na aldeia, cujo nome não sabemos porque já ninguém o pronunciava, não vivia vivalma, isto com a excepção do tio e do miúdo e do cão e do gato. Não havia escola, não havia café, casa do povo, parque infantil, junta de freguesia, enfim não havia nada daquilo que normalmente há numa aldeia e que acaba por ser aquilo que de facto torna uma aldeia em aldeia e não noutra coisa qualquer. Restava apenas um edifício quase podre com uma cruz no topo que denunciava ter sido em tempos uma igreja, ao lado da qual havia um campo salpicado de diversos amontoados de pedras que sugeriam ser este o local do antigo cemitério.
Em relação aos pais do miúdo e já agora em relação aos restantes habitantes da aldeia o único que poderia explicar o ocorrido era o tio mas mesmo o tio já não se lembrava bem à conta de já ter passado muito tempo e diga-se que mesmo que se lembrasse dificilmente poderia contar o estranho sucedido porque à força de não ter ninguém com quem falar também já não se lembrava de muitas das palavras ou sequer de como as organizar em frases.
Temos então em resumo, e para abreviar o intróito que já vai longo, um miúdo que poderia ter 7 ou 8 anos, mas também poderia ter mais ou até inclusivamente ter menos, e um tio.
Podíamos dizer que viviam um para o outro mas isso seria uma mentira e portanto diremos só que viviam cada um a sua vida e que à conta de morarem na mesma aldeia onde não havia mais ninguém, e na mesma casa onde para além deles só havia o cão e o gato, acabavam por se estar sempre a encontrar. Em qualquer outra aldeia daquele ou de qualquer outro país o tio seria considerado um maluquinho daqueles a quem as pessoas de bem dão esmolas em forma de moedas e de carcaças de pão, menos por pena e mais para parecerem pessoas de bem, mas naquela aldeia o tio era o único adulto e portanto reinava absoluto sobre todas as praças vazias. Deste modo, tudo aquilo que aliás era bem pouco mas adiante, que o miúdo sabia em termos das coisas e da linguagem das gentes tinha sido o tio a ensinar. Como o tio tinha esquecido ou decidido esquecer todos os conceitos que não fossem essenciais, o miúdo desconhecia o que era o bem e o mal, o céu e o inferno, a mentira e a verdade. Moral era coisa que aliás nem sequer se aplicava pela simples razão de que não havia ninguém para julgar nem quase ninguém para ser julgado.
Um dia, como não importa qual nem de que mês nem de ano chamemos-lhe então um qualquer dia-feira, um caixeiro-viajante que como o nome indica ganhava o pão saltando de aldeia em aldeia, perdeu-se tão perdido nas suas andanças pela serra que acabou por encontrar a aldeia desta história. Com uma carroça puxada por uma mula com ar de quem já tinha visto toda a terra até ao fim do mundo e arrebaldes, o caixeiro vendia de tudo um pouco, desde óleo de fígado de bacalhau, a pomadas e unguentos para todo o tipo de aflições mais ou menos comichosas das partes mais ou menos pudendas, passando por ervas para botar maus olhados, ervas para tirar maus olhados, óculos, monóculos, binóculos, dentaduras, dados, cartas, e mais uma catrafiada de coisas que na sua maior parte pareciam ter sido tiradas de caixotes do lixo. Lentamente, e diga-se que um tanto a quanto a medo, o estranho desfile de carroça, mula e caixeiro foi fazendo o seu caminho pelas ruas da aldeia, sob o olhar atento das ruínas das casas há muito desabitadas. Chegados à praça central bastou um pequeno grunhido do condutor para que a mula parasse. Surpreendido pela completa ausência de pessoas, o caixeiro reprimiu o instinto de se beliscar para confirmar se estava mesmo acordado e, em vez disso, limitou-se a olhar em volta. De repente, tanto assim que direi mesmo repentinamente, surgiu como que nascido das pedras da calçada o miúdo, logo seguido a curta distância pelo ritmo preguiçoso do cão e pelo ritmo desinteressado do gato. O curioso diálogo que se estabeleceu ali e então entre a incontinência verbal do caixeiro e os longos silêncios do miúdo foi ao mesmo tempo estranho e agradável para cada um deles. O caixeiro contente por poder finalmente falar com alguém sem estar a tentar vender-lhe nada e o miúdo contente por finalmente ouvir alguém falar. Foi de tal ordem a cumplicidade nascida entre os dois que quando o caixeiro decidiu que era tempo de partir e com um pequeno grunhido pôs a mula a andar, o miúdo que sempre tinha vivido naquela a mais longínqua das aldeias lá para os lados da mais alta das serras do país, começou a andar ao lado da carroça primeiro sem pensar muito nisso e depois já decidido a ir para não mais voltar. Ao longe, de uma das janelas de casa o tio observava em silêncio. Vendo que para além do miúdo também o cão e o gato, este aparentemente a contragosto, se preparavam para ir embora, levantou-se, sacudiu como pôde algumas das camadas de poeira que cobriam a sua roupa e lentamente, mas mesmo assim decidido, saiu de casa sem se preocupar sequer em bater a velha porta de madeira.
Ao percorrer pela última vez os únicos caminhos que tinha conhecido em toda a sua vida, os olhos do tio brilhavam e, pela primeira vez desde há muito muito tempo, ele estava finalmente feliz.

4 comentários:

JB disse...

... noto o mesmo estilo cuidado, e ainda em fase de auto-descoberta...
eventualmente, desta vez explorando mais a sua fantasia e imaginação...
a seguir, estas crónicas de um romancista desconhecido

Anónimo disse...

A história promove o sentimento de pertença a um grupo, e que naquelas circunstâncias estaria impedido. O autor assim explica o esvaziamento das nossas aldeias - uns atrás dos outros.

Anónimo disse...

Meu caro Manfred Man (Homem Duplicado):
A ocupação do território ainda está por definir. Onde antes estavam 1000, agora 10 rentabilizam a área e podem lá chegar de automóvel vindos de muitos Km. As nossas aldeias, reflectem o tempo em que as deslocações se mediam em dias e o automóvel e a TV não chegavam. A tecnologia encurtou espaços e o tempo.
Nicolae Ceauşescu (1918 — 1989) - Roménia, em 1972, iniciou um programa que visava construir uma “sociedade socialista desenvolvida de forma multilateral”, que implicou a demolição sistemática de múltiplas aldeias, o deslocamento da população para pequenas estruturas urbanas, muitas vezes mesmo sem esperar que os programas de construção estivessem concluídos.
Com tudo de autocrata que o homem era, deve ter-se apercebido do futuro e impôs o caminho “à força”.
Nós portugueses fazemos exactamente o mesmo, mas “à força de abandono”, deixamos lá a apodrecer os velhos, para quando e se… se decida qual a utilidade das nossas aldeias e campos, que Lisboa vê como espaços moribundos de cultura onde à semelhança dos centros das cidades, quer construir de raiz.

Anónimo disse...

Onde é que era mesmo a cena?

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